Lic. Intercultural - 7 - Proposta Curricular
Licenciatura Intercultural 7 - Proposta Curricular O currículo da Licenciatura Intercultural constitui-se da matriz de Formação Básica e das três matrizes de Formação Específica. Estas últimas serão destinadas à especialização dos professores indígenas e lhes oferecerão um leque de opções de estudo. As matrizes de Formação Básica do Professor e as de Formação Específica são compostas de temas referenciais, áreas de conhecimento e temas contextuais. A formação básica do professor terá uma duração de dois anos e a específica de três Pretende-se com essa proposta curricular propiciar ao professor indígena uma formação que lhe dê condições para promover qualquer tipo de ensino, seja ele monolíngüe, bilíngüe, ou de qualquer outro tipo, independente da área que ele escolha para se especializar. Isso possibilitará ao professor não ser apenas um especialista, mas um profissional capaz de assessorar sua comunidade, como também lidar com os conhecimentos específicos de forma plural. O importante é que o professor tenha condições de colocar, efetivamente, a escola a serviço de sua comunidade, contribuindo com o desenvolvimento dos projetos de melhoria de vida.
7.1 - Princípios Curriculares Os princípios do Curso de Licenciatura, como já foi mencionado, são transdisciplinaridade e interculturalidade, entendidos aqui de forma dialógica, tanto no que se refere à relação entre as diferentes culturas quanto à interação entre as várias áreas do saber. Nesse sentido, as áreas de conhecimento das diferentes ciências estarão relacionadas umas com as outras, sem separar, por exemplo, matemática de geografia, língua de história, literatura de arte, ou seja, nessa concepção a transdisciplinaridade e a interculturalidade acontecerão normalmente. Tampouco estarão separados os conhecimentos produzidos pelos indígenas daqueles considerados universais, a pesquisa dos processos de ensino. O currículo da Licenciatura Intercultural está fundamentado em uma política de valorização cultural; na busca de articulação entre teoria e prática; em uma visão interdisciplinar que facilite à integração, em diferentes espaços e projetos, de atividades de ensino, pesquisa e extensão; em uma preocupação com a articulação dos chamados conteúdos específicos e conteúdos pedagógicos; na valorização e promoção da pesquisa em ensino e em desenvolvimento de projetos alternativos de melhoria de vida. Conceber o currículo assim, ou seja, de modo crítico, produtivo e útil, permite ressaltar seu caráter político e histórico e entender a instituição escola não apenas como um lugar onde se realiza a (re)construção do conhecimento, mas, além disso, como um lugar onde se reflete criticamente acerca das implicações sociais, políticas e econômicas.
7.2 -Áreas de Conhecimento das Matrizes A Matriz Formação Básica do Professor e também as Matrizes Específicas baseiam-se nas áreas de conhecimentos das Ciências da Cultura, da Natureza e da Linguagem. A meta é oferecer aos professores indígenas uma formação que lhes permita construir uma proposta educacional de base antropológica, lingüística e de respeito à diferença. Tem por objetivo a transformação da escola das comunidades indígenas, historicamente destinadas à “civilização” dos índios, em um lugar para o exercício indígena da autonomia. De modo geral, o que há de fato é, de um lado, a discussão do direito que o índio tem de uma educação diferenciada e, de outro, a realidade precária das escolas indígenas, como também a dificuldade em aceitar a especificidade da educação escolar indígena por parte dos órgãos competentes. Assim sendo, torna-se necessário que, tanto nas matrizes de formação básica quanto nas específicas, o professor indígena possa desenvolver o exercício de problematização teórica referente à educação de modo geral, à educação escolar indígena e às políticas lingüísticas e indigenistas. Isso deve ser encaminhado em estreita sintonia com a prática pedagógica, tanto na elaboração e desenvolvimento de projetos pedagógicos, de regimentos e de calendários escolares, quanto na elaboração de materiais didáticos e definição de metodologias de ensino e também com os projetos das comunidades.
7.3 -Temas Referenciais das Matrizes Os temas referenciais – interculturalidade, diversidade e diferença, identidade/etnicidade, autonomia e alteridade - são indicadores de que perspectiva os temas contextuais deverão ser trabalhados sem perder de vista o vínculo entre saberes locais e universais. A interculturalidade está sendo entendida aqui não apenas como um meio que reconhece o valor intrínseco de cada cultura e defende o respeito recíproco entre elas, mas que propõe também enfrentar os conflitos oriundos desse relacionamento, como também as suas riquezas. Nesse sentido, a discussão sobre a desigualdade social deverá vir antes da discussão da diferença e da especificidade cultural. Caso contrário, podemos estar mais uma vez contribuindo com a reprodução de uma estrutura social discriminatória e desigual. Nesse sentido, pluralidade é entendida apenas como identificação quantitativa de sociedades e não como diálogo entre culturas. Diálogo, como afirma Paulo Freire (1970), não pode reduzir-se a um ato de depositar idéias de um sujeito no outro, nem tampouco se tornar simples troca de idéias a serem consumidas por parte dos participantes, normalmente pelos oprimidos, conforme o pensamento da ideologia assimilacionista. Os estudos sobre relações interétnicas têm demonstrado que, na prática, as diferenças entre essas distintas culturas não são tratadas como legítimas, gerando, em conseqüência disso, situações de sujeição e de dominação das sociedades minoritárias frente às majoritárias, quando não de conflitos abertos. Preconceito, discriminação, segregação, entre outros, são mecanismos sociais comumente utilizados para eliminar a diversidade em contextos nos quais predominam jogos de interesses econômicos e políticos contraditórios. Um exemplo disso são as disputas por terras indígenas e pelas riquezas existentes nelas. O reconhecimento da diversidade cultural implica, pois, necessariamente, no reconhecimento de que existem interesses contraditórios que levam à negação dessa diversidade, muitas vezes manifesta até em políticas públicas de condenáveis processos de assimilação, integração, etc. O curso de Licenciatura Intercultural prioriza a autonomia e o fortalecimento das identidades étnicas nesse contexto de confronto e interesses opostos. Prioriza também a sustentabilidade de políticas econômicas, lingüísticas, de manutenção cultural e de defesa das terras indígenas.
7.3.1 – Matriz de Formação Básica do Professor Indígena Os conteúdos a serem estudados na Matriz Formação Básica do Professor Indígena têm como proposta fornecer subsídios para a produção de material didático, construção de metodologias de ensino, definição de tipo de ensino a ser implementado, adoção de políticas lingüísticas, desenvolvimento de pesquisa e de programas alternativos econômicos e de construção de projetos pedagógicos que contemplem a realidade social do povo indígena. A Matriz Formação Básica do Professor é o alicerce da construção das matrizes específicas entendidas aqui como áreas distintas, mas não isoladas umas das outras: Ciência da Natureza, Ciências da Cultura, Ciências da Linguagem. Estas se originam daquela e com ela dialogam. Na Matriz Formação Básica serão incluídos também os conhecimentos específicos das Ciências Humanas. Quadro 2- Matriz de Formação Básica do Professor
7.3.2 Matrizes Específicas As matrizes específicas são Ciências da Natureza, Ciências da Cultura e Ciências da Linguagem. Os conteúdos que compõem essas matrizes abrangem as áreas de Antropologia, Sociologia, Lingüística, História, Geografia, Biologia, Artes, Ecologia, Física, Química, Matemática, Economia, Literatura, Educação, Mitologia, Ciência Política, Economia, Turismo etc. Os temas contextuais das matrizes serão detalhados no planejamento a ser desenvolvido em cada etapa do curso, mas sem perder de vista os princípios norteadores e o tipo de ensino, se bilíngüe, monolíngüe, trilíngüe, conforme a realidade de cada comunidade indígena.
a - Ciências da Cultura A área de concentração das Ciências da Cultura prioriza o diálogo entre a valorização das culturas indígenas, garantida constitucionalmente, e os projetos de educação escolar que tenham como horizonte a melhoria de vida dos povos indígenas, bem como a preservação das culturas e das línguas maternas, elementos importantes de identificação étnica. Prioriza também o diálogo interétnico e intercultural entre índios e não-índios, reconhecendo a escola como lugar de manifestação de confrontos, mas compreendendo-a também como espaço privilegiado para a criação de novas formas de convívio e reflexão no campo da alteridade. O professor indígena terá oportunidade de entender a escola, enquanto meio para a compreensão da situação de conflitos gerados nas relações interculturais e também como um contexto de aquisição de conhecimentos e de tecnologias importantes que podem ser adquiridos na convivência com os não-índios. O importante é que o professor adquira uma formação capaz de lhe ajudar a entender que as escolas indígenas são partes integrantes de um projeto mais amplo vivido e reivindicado pelas suas sociedades na busca de garantir seu presente e futuro, como povos autônomos. Quadro 3- Ciências da Cultura
b- Ciências da Linguagem A área de concentração das Ciências da Linguagem prioriza a análise das situações de usos das línguas indígenas e do português nas relações interculturais. Tem por meta estudar os seguintes aspectos: imposição lingüística, empréstimos, conflito lingüístico, morte e mistura de línguas, (bi) plurilingüismo, enfim a situação sociolingüística dos povos indígenas. Concentra-se ainda na documentação e estudo de línguas indígenas e na descrição dessas línguas, nas áreas da fonética, fonologia, morfologia. Sintaxe e semântica. Esses estudos são importantes para se discutir políticas de (re)vitalização das línguas indígenas, propostas de tipos de ensino bilíngües, metodologias de ensino de línguas maternas/origem e do português, tanto como primeira língua quanto como segunda, e na escolha do tipo de material didático a ser produzido. Estudos realizados em comunidades indígenas mostram que suas línguas estão perigosamente ameaçadas de extinção e, com isso, todo um patrimônio cultural pode desaparecer, causando um prejuízo incalculável. Daí a importância de medidas coletivas, resguardando as especificidades, na defesa do patrimônio indígena. Junto com os estudos das línguas acontecerão os estudos das Literaturas Indígenas e não –indígenas e também das Artes. Quadro 4- Ciências da Linguagem
c- Ciências da Natureza As Ciências da Natureza são visualizadas como uma área transdisciplinar que envolve o estudo do espaço geográfico e de suas paisagens e alterações temporais, o estudo dos seres vivos e de sua inter-relação com esse espaço, da composição e das transformações químicas na biosfera, na atmosfera e na litosfera, das dinâmicas e forças resultantes dos processos da interação do espaço físico e biológico e, ainda, a explicação numérica e a representação gráfica de todo esse conhecimento da Natureza. Tudo isso pensado no diálogo entre culturas e visões de mundo que envolve esses estudos, a diversidade cultural, a reflexão sobre o processo de ocupação e pressão sobre os territórios indígenas. É importante salientar que as concepções indígenas de humanidade e natureza são muito diferentes das não-indígenas. Elas não se enquadram nas oposições em que operam as ciências ocidentais, e não colocam os homens e suas sociedades numa relação de descontinuidade: por exemplo, alguns animais e plantas são, como os homens, dotados de cultura, e possuem até mesmo organização social. Respeitando a especificidade das interpretações indígenas sobre o mundo, os estudos da natureza procurarão contemplar os conteúdos que tratam dos homens, suas sociedades e meio ambiente, mas de forma que esses conteúdos não estejam compartimentados. Quadro 5- Ciências da Natureza
Os temas Currículo pleno das escolas indígenas, metodologia de ensino e gestão escolar fazem parte das três matrizes específicas devido à exigência do curso para que cada área discuta e assessore os professores indígenas na elaboração do currículo pleno de sua escola, como também discuta as questões referentes à gestão escolar tanto no campo da administração quanto na construção de uma educação específica e diferenciada.
7.4 - Pesquisa As pesquisas a serem desenvolvidas pelos professores indígenas, durante o curso, terão início na Matriz de Formação Básica e continuarão nas Específicas. Têm por propósito subsidiar o diálogo entre os conhecimentos específicos produzidos pelos povos indígenas e os ditos científicos ou universais, favorecendo, assim, a realização, na prática, da transdiciplinariedade e da interculturalidade. Servirão ainda para dar sustentação às políticas lingüísticas, à luta pela cidadania, à participação política nos diversos contextos interculturais, à produção de material didático e à construção de projetos pedagógicos e da gestão escolar, como também para estimular o ingresso de intelectuais indígenas no cenário científico. A partir do terceiro ano, o estudante irá desenvolver uma pesquisa, em área específica, sob a orientação de um professor do curso. Os eixos temáticos a serem trabalhados serão orientados por cinco linhas de pesquisa, a saber: 1) Educação Indígena e Educação Escolar; 2) Meio Ambiente e Auto-sustentação; 3) Políticas Lingüísticas e Ensino Bilíngüe; 4) Arte, Tradição e Mercado; 5) Políticas Indigenistas, Interculturalidade e Movimentos Indígenas No final do curso, cada professor indígena, baseado na sua pesquisa e na área que escolheu para se especializar, apresentará um projeto alternativo de melhoria de vida para sua comunidade. Não se trata de uma monografia, mas de um projeto de extensão que visa um ensino de qualidade nas escolas indígenas, vinculado aos projetos das comunidades em que se inserem. Os trabalhos de conclusão de curso, requisito obrigatório para obtenção do título, deverão ser desenvolvidos em uma das linhas de pesquisa acima definidas, e serão avaliados pelo professor orientador.
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