História da Faculdade de Letras

Histórico

DEPOIMENTO: Egídio Turchi

Agradeço a fidalguia da Profa. Darcy França Denófrio, membro do Conselho Editorial da Revista do ICHL, em sugerir que este número fosse dedicado aos meus cinqüenta anos de magistério. Vejo nesta homenagem mais um gesto de carinho e amizade não só dela como dos meus colegas e a recebo comovido, porque sei o quanto há de sinceridade neste pensamento gentil e generoso.

Meus 50 anos de magistério não poderiam ser comemorados de forma mais solene. Discursos e festas, flores e placas, nome de rua e até monumento são passageiros, mudam e perecem. O papel, embora frágil, é o único material que resiste ao tempo porque é veículo da palavra que é eterna.

Meio século dividido apenas e sempre em aulas e férias, provas e formaturas; turmas novas e veteranas, calouros e formandos. Tempo de semear e tempo de colher.

Dar aula foi para mim o que deve ser para o artista representar – anos a fio – a mesma comédia que é sempre nova porque novos são os expectadores e se aprimora cada dia mais diante da platéia cada vez mais exigente. Dei aulas ininterruptamente nestes 50 anos, às vezes até nas férias, aos sábados e domingos, de noite e de madrugada. Até mesmo quando, raramente, tive que ocupar cargos administrativos, minha fuga ao massante trabalho burocrático era esconder-me numa sala de aula onde, ao contato com os alunos, retemperava minhas energias.

De 1939 a 1989 a humanidade destruiu valores e patrimônios acumulados durante milênios e, ao mesmo tempo, tentou criar outros valores e outros patrimônios. No campo do ensino, eu vi, não uma, mas inúmeras transformações. Vi reformas e reformas das reformas, vi a escola passar do formalismo à irreverência, do medo ao respeito, do respeito à confiança. Já fui saudado, ao entrar em classe, com um solene “Bom dia, senhor professor!” gritado em coro pelos alunos todos de pé; hoje, com muito orgulho e prazer, eu sou “você” e, às vezes, tenho que dar murro na mesa para poder começar minha aula. Já fui professor sisudo de paletó e gravata, fazendo a chamada sentado solenemente na cadeira; já me dirigi aos alunos num tom solene, usando o castiço português. Há tempo, aposentei o paletó, a gravata e a camisa de manga comprida, embora não tenha chegado ao ponto de usar alpargata e chinelão de couro e, apesar do esforço para acompanhar os tempos, não tenho tido a coragem de sentar de short na mesa e balançar as pernas.

Mudaram os alunos e mudaram os professores, devemos reconhecer, porém, que hoje a escola é mais aberta ao diálogo, mais franca no relacionamento entre aluno e professor, mais humana, enfim, embora menos eficiente.

Neste meio século, eu vi os alunos se libertarem do passado, vi cair velhos e arraigados tabus, assisti à reviravolta nos costumes, no modo de pensar e de viver; vi o mundo entrar numa época de maravilhas criadas pelo progresso científico.

Não acuso ninguém, antes, assumo a responsabilidade e a culpa que me cabem, mas, infelizmente, todo o progresso técnico que a eletrônica oferece para o conforto dos homens ainda não foi aproveitado, ainda não chegou à escola. Alunos e professores, como homens, transformaram-se neste meio século, mas a escola não acompanhou o progresso técnico da nossa era. Após 50 anos de magistério ainda dou aula diante do mesmo quadro-negro e com um pedaço de giz na mão.

Mas, não convém enveredar por este caminho – o espaço que me foi reservado na Revista tem por finalidade prestar meu depoimento sobre os primeiros tempos da Faculdade de Filosofia da UFG, que ajudei a fundar e da qual fui o primeiro Diretor.

Dos meus 50 anos de magistério, quarenta e cinco foram vividos em Goiânia. Aqui passei, a primeira vez, em dezembro de 1942 e, em setembro de 1944, elegi Goiânia minha cidade definitiva, a que se escolhe para sempre, para viver e casar.

A rigor, não posso ser considerado pioneiro, pelo menos, dos tempos heróicos; não morei em Campininha, nem sofri o desconforto dos barracos de madeira à beira do Botafogo e a poeira do descampado, quando foram traçadas as primeiras ruas e os alicerces dos primeiros edifícios públicos. Quando aqui cheguei, já havia ruas asfaltadas, algumas casas no Bairro Popular, quase todos os edifícios da Praça Cívica, raros prédios na Avenida Goiás e lojas na Avenida Anhangüera.

Quando cheguei a Goiânia, já era professor, vinha com a prática de cinco anos no magistério e, na carteira, bem guardado, o precioso registro de professor secundário fornecido pelo Ministério da Educação e Saúde, conseguido ao término do Curso de Filosofia no Seminário Salesiano de Cuiabá. Como tenha chegado, em 1935, aos 16 anos incompletos na Capital de Mato Grosso, para estudar, proveniente da Itália, minha terra natal, pode parecer estranho, mas, na verdade, é uma estória simples – queria ser missionário no meio dos índios. Por isto, após 4 anos de preparação nos estudos e alguns meses de prática nos colégios salesianos de Campo Grande e Silvânia, fui despachado para Araguaiana, terra de missão, às margens do rio Araguaia, a 600 km de Cuiabá e a 300 de Goiânia.

Começou, assim, em março de 1939, no colégio Salesiano “Nossa Senhora da Piedade”, minha vida de Professor. Em 1944, indo para São Paulo continuar meus estudos, quis Deus que eu fizesse uma etapa em Goiânia e aqui estou até hoje. Portanto, minha vida de professor, assumida e sempre participante, se confunde com a história de Goiânia.

Se meu depoimento tivesse que abranger este longo período, seria necessário escrever a história da cidade que eu vi crescer e expandir-se além de qualquer previsão. Seria, ao mesmo tempo, descrever, com orgulho e ternura, os fatos que, como cidadão, não apenas presenciei, mas neles tomei parte. Seria relembrar todas as pessoas com quem convivi, que foram meus companheiros de trabalho ou de ideal e que, de alguma forma, passaram pelo meu caminho, como colegas e como alunos.

Lecionei em quase todos os colégios secundários de Goiânia e meu nome consta entre os fundadores de algumas faculdades. Mas o que realmente marcou minha vida de professor foi a luta e o entusiasmo pela criação da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Goiás.

Meu depoimento sobre os primeiros tempos não tem por finalidade estabelecer a verdade – a quem interessa a verdade? – nem recriminar ou elogiar. São apenas lembranças de quem viveu o tempo da fundação e guardou com carinho datas e nomes.

Em 14 de dezembro de 1960, o Presidente Juscelino Kubitschek, no alto da escadaria que dá acesso ao Palácio das Esmeraldas, na Praça Cívica, assinou, diante da multidão, a Lei n.º 3.843 C que criava a Universidade Federal de Goiás.

Se a luta pela criação da UFG foi a luta de muitos, podemos até afirmar, que todo o povo goiano – governo, estudantes, intelectuais – a luta para criar a Faculdade de Filosofia foi de um homem – o Prof. Colemar Natal e Silva, primeiro Reitor da Universidade. Idealista de visão dinâmica e clara dos problemas universitários, sentiu que faltava à Universidade aquele princípio unificador, um núcleo central em torno do qual gravitassem as atividades universitárias sem o qual a Universidade continuaria a ser um agregado de faculdades estanques.

A criação dessa unidade era um imperativo da própria Lei n.º 3.834 C, que dispunha em seu Art. 2.º, § 3.º que o Poder Executivo devia promover, dentro do prazo de 3 anos, a criação ou agregado à Universidade de uma Faculdade de Filosofa, Ciências e Letras.

Pode parecer, hoje, estranho que a Lei, ao criar uma Universidade, se preocupasse com a falta de uma simples unidade. Convém lembrar que as Universidades só poderiam ser criadas se tivessem as Faculdades de Direito e de Filosofia, Ciências e Letras. As outras eram optativas, só as duas obrigatórias. O parágrafo enxertado no texto da Lei servia para legalizar a criação da nova Universidade, tendo em vista que a Faculdade de Filosofia iria ser criada no prazo de 3 anos, o legislador fez de conta que ela já existisse. Na prática, o jeitinho se revelou inoperante – o simples fato de torná-la imperativo da Lei não a criava e muito menos a punha em funcionamento.

O Brasil debatia-se, como ainda hoje, em crise financeira; não havia verbas sobretudo para a educação, como sempre. O parlamentarismo que se instalara à época, no país, após a renúncia de Jânio Quadros, transformou as soluções dos problemas num autêntico jogo de empurra entre o Executivo e o Legislativo.

Coube ao Poder Executivo, em 08 de novembro de 1962, baixar o Decreto n.º 51.582, firmado por João Goulart, Hermes Lima e Darcy Ribeiro, respectivamente, Presidente, Primeiro Ministro e Ministro da Educação, criando a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Federal de Goiás.

Mas, entre a data da criação da Universidade – 14 de dezembro de 1960 – e a da criação da Faculdade de Filosofia – 08 de novembro de 1962 – inúmeras lutas foram travadas. Todos na Universidade e no MEC estavam, aparentemente, de acordo, nos altos e baixos escalões, mas o processo já pronto desaparecia nos labirintos ministeriais; uma vez chegou até o Ministro só com a capa, esvaziado que fora de todos os documentos.

A luta não era em campo aberto, mas entre os bastidores, contra inimigos fantasmas. Os inimigos da Faculdade eram nitidamente divididos em dois campos – os que afirmavam que, embora necessária legalmente, podia-se muito bem passar sem ela e os outros que a queriam tão perfeita que a tornavam impossível. Saiba mais »